Milhões de seres humanos, hoje, vivem ás
margens de tudo. À margem da participação social, política e do bem-estar
básico. À margem até de si. Acham que não são dignos ou não estão à altura de
oferecer algo para outros seres humanos. Sentem-se incapazes de serem
instrumentos - mesmo frágeis, - de transformação, seja ela qual for. São
seres cortados, definidos pelos bem-pensantes como ‘pessoas sem identidade’,
‘lixo ou escória social’. São os ‘Bartimeus’ dos nossos dias. ‘Bartimeus cegos’
porque ninguém os enxergou como pessoas presentes no caminho que todos são
chamados a percorrer. O caminho da existência humana. Bartimeus que se tornaram
cegos porque nunca foram olhados com amor, com respeito, com estima. E por
isso, eles mesmos, não apreenderam a olhar para si dessa forma. Há, portanto,
nos nossos dias, uma cegueira que é uma matriz geradora de infinitas outras
formas de cegueiras de toda ordem. Constitui-se um ciclo vicioso que exige uma
interrupção radical e corajosa. Sim, corajosa, pois também o 'cego' acaba se
adequando e conformando com sua própria cegueira, - mesmo que gerada por
outros, ou por achar que ela é natural, que é ‘de nascença’. Jesus, na narração
hodierna de Marcos, é aquele que interrompe e quebra a espiral da cegueira
social, política, econômica e religiosa condensada e simbolizada por Bartimeu.
O relevante no evangelista é a formulação e a descrição didática das várias
etapas de um processo humano e místico que deveria levar todos os Bartimeus a
alcançar a luz plena. O caminho para poder nos enxergar como gente que tem
valor e luz própria, e que pode superar todo tipo de cegueira.
Primeiro passo: identificação e descrição da
pessoa que não enxerga: Bartimeu, filho de Alfeu, cego de nascença. Na
identidade inicial descrita por Marcos não se apresentam os elementos positivos
que caracterizam aquele cidadão, mas ao contrário, coloca-se como central um
handicap, uma deficiência. Quase a dizer que ele, ‘Bartimeu’ e nós, muitas
vezes, somos identificados mais pelos nossos defeitos do que pelas nossas
virtudes. Relacionado a isso há uma descrição de caráter social, mesmo que
pareça geográfico: Bartimeu está à beira do caminho, da estrada. À margem de um
caminho que é percorrido por numerosas massas, mas que é fechado e inacessível
para o cego Bartimeu. O seu lugar social é a margem, não o centro. É nela que
ele tem que se deslocar e viver. E não queira ele romper o que a natureza, ou
Deus, estabeleceu! Assim os falsos videntes achavam.
O segundo passo para enxergar a luz e o
conhecimento pleno é saber identificar quem tem olhos, poder e ousadia para nos
libertar das nossas trevas interiores.Das nossas cegueiras que nos impedem de
nos ver como iguais, com valores e potencialidades. Bartimeu ‘enxerga’ na proposta
e no jeito de Jesus de Nazaré aquele que pode libertá-lo de suas trevas, e
grita por compaixão. A não conformação de Bartimeu com sua cegueira, e o seu
grito de fé na pessoa de Jesus, parecem sacudir os demais cegos que achavam que
enxergavam, e que acabam se tornando veículos facilitadores do encontro
dele com Jesus.
O terceiro passo é a decisão firme e
consciente de Bartimeu de ‘levantar-se’ para ir até o Mestre. O ‘levanta-te’
dirigido a Bartimeu, após o consentimento de Jesus em encontrá-lo, manifesta o
firme desejo e propósito de ele não mais ficar se arrastando desanimado e
humilhado à beira da estrada. Ele tem que saber se levantar e, nesse caso,
sem a ajuda de ninguém, pois deixar a margem para ir ao centro da estrada onde
está Jesus é uma decisão e opção pessoal. Algo que só Bartimeu pode fazer, de
forma livre e consciente!
A quarta etapa é o encontro pessoal e a
convivência do cego Bartimeu, - já consciente da origem não natural de sua
cegueira e desejoso da sua superação, - com o próprio Jesus. É no encontro com
o Mestre que Bartimeu não somente recupera a vista, mas adquire uma nova
consciência de si. Com Jesus ‘os Bartimeus’ descobrem que eles/as são pessoas
de fé. Que não são uma massa de cegos conformados com a escuridão da vida
produzida por falsos videntes. Que a iniciativa de correr atrás por luz e
libertação foi deles. Que, afinal, com o encontro com Jesus a sua nova
identidade não será mais caracterizada pelos seus defeitos, mas pela sua
capacidade de exigir compaixão, de ter fé e coragem mesmo quando a escuridão
das trevas não deixa filtrar a luz que está sempre ao nosso alcance. Só se
abrindo integralmente ao jeito de Jesus para poder enxergar, e fazer os outros
enxergarem!
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