Vivemos numa sempre mais árdua e
desafiadora convivência humana. Nela somos, ao mesmo tempo, geradores e vítimas
de relações que oprimem e libertam. Que dominam e que reconhecem a igualdade
como valor. Somos cúmplices de relações que apelam à competição desregrada e à
negação do outro e, simultaneamente, promotores e defensores da dignidade do
outro.Experimentamos a beleza do serviço gratuito,
discreto e anônimo, mas cedemos à sedução do nosso reconhecimento público, e da
‘cobrança’ econômica e emocional. Transbordamos de fortes e sinceros afetos
pelas pessoas que cuidam de nós, diuturnamente, de forma abnegada, mas caímos
nos braços da última efêmera e fatal atração. Choramos a nossa tristeza
interior por nos sentir uma permanente contradição ambulante, incapazes de nos
desvencilhar de algo que parece ter fugido definitivamente do nosso controle.
Com angústia nos perguntamos se nos é possível experimentar, de fato, a plena
liberdade. E realizar o que sonhamos e almejamos. Uma consciência essa que
estava presente também nos discípulos de Jesus. Reiteradas vezes eles
perguntavam ao Mestre se lhes era possível se salvar diante de exigências
existenciais e evangélicas tão radicais!
O evangelho de hoje desenvolve,
substancialmente, os conteúdos abordados também no domingo passado: os
‘pequenos’ são herdeiros do Reino de Deus, e acolhê-los é acolher o próprio
Deus de Jesus. No evangelho hodierno, especificamente: é preciso se tornar
‘pequenos’, invisíveis (micrói) para poder ‘ver’ e saborear a novidade da
Realeza de Deus que já iniciou e consiste no reconhecimento e na prática da
igualdade e da unidade com o outro/a (v.14). Renunciando, portanto, a toda forma de superioridade e dominação sobre
o outro, sobre o pequeno/a desamparado e ‘repudiado’. Jesus trabalha isso a
partir de uma indagação específica feita pelos seus discípulos, ou seja, se era
legalmente permitido ou não abandonar definitivamente a própria ‘mulher’.
Jesus, com extrema perspicácia, não cita as normas legais em vigor como
costumavam fazer os escribas. Ao contrário, lembra-lhes o princípio da
igualdade – na diversidade, - que vinha existindo entre o homem e a mulher
desde que Deus os criou. Ao concebê-los como filhos e filhas seus Deus lhes
soprou o espírito da vida como se fossem um único e indissociável ser. Em plena
igualdade entre si. Uma carne só, um projeto unitário de vida em comum. Um
vivendo para e pelo outro (v.7). Pelo contexto em que Jesus afirma isso, parece
evidente que não se refere direta ou diretamente a esta ou àquela instituição social
ou religiosa (matrimônio institucional), mas ao fato de que nenhuma dessas duas
novas criaturas’ poderá prevalecer sobre a outra. Nenhum dos dois novos seres
poderá dominar e subjugar o outro. Ou rejeitar e abandonar o outro. Ao
contrário, homem e mulher são uma unidade indissociável, criativa, de
colaboração, de serviço recíproco, de cumplicidade amorosa. Superando
sentimentos de superioridade sobre o outro, egoísmos mesquinhos, e
machismos homofóbicos e misóginos.
É nesse sentido que Jesus afirma que
os humanos não podem destruir e dissociar a ‘unidade na igualdade’ entre homem
e mulher que Deus quis desde o início!(v.9) Numa realidade cultural em que o
homem tinha poder absoluto sobre a mulher e dispunha sobre ela como bem
quisesse, a postura de Jesus era surpreendente!Afinal, o Jesus que estava caminhando rumo à cruz percebia que a única
coisa que ainda lhe restava era acolher o outro/a como sendo o seu ‘pequeno/a’
a ser acolhido e amado infinitamente. Ao acolhê-lo e ampará-lo o reconhecia
como ‘igual’, e mesmo na sua diversidade, o acolhia como sendo ‘carne da sua
mesma carne’. Irmanados pelo único e visceral amor de Deus. Um Deus que em
Jesus continuava a acolher e a amar fielmente, sem recuos e arrependimentos, os
‘seus pequenos/as’ herdeiros e construtores do novo Reino.
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